quinta-feira, 19 de junho de 2014

Malévola e a Fragilidade das Histórias Infantis

      O tom sombrio da nova produção Disney impressiona quem lembra dos desenhos clássicos do estúdio, principalmente se pensarmos no tom romântico de A Bela Adormecida que inspirou Malévola. Aos poucos vemos vários estereótipos dos contos de fadas (que a própria Disney ajudou a perpetuar) serem abandonados como a princesa indefesa que não desfalece à espera de seu salvador (Enrolados), a menina que não precisa se casar para ter um final feliz (Valente) ou mesmo que o amor verdadeiro não vem de uma paixão à primeira vista (Frozen), mas Malévola traz um questionamento sobre as próprias histórias infantis.


   Antes de pensarmos nas ideias presentes em Malévola, vem o inevitável questionamento sobre sua justificativa na alteração do clássico original. Por que reescrever a história ao invés de adaptá-la como nos livros? Bem, talvez vocês se surpreenda em saber que a versão que você conhece também é uma releitura - e não é a única. A história de uma princesa amaldiçoada por uma fada que não é convidada ao batizado e despertada por um belo príncipe foi primeiramente publicada pelos irmãos Grimm como Dornröschen numa tentativa de resgatar e preservar o folclore alemão, no entanto ela é uma variação da fábula  La Belle au bois Dormant de duas partes escrita pelo francês Charles Perrault que por sua vez é uma releitura de um conto de fadas italiano "Sole, Luna, e Talia", muito provavelmente baseado em outras histórias, pois tanto A Bela Adormecida quanto outros contos de fadas eram inicialmente narrativas orais, readaptadas toda vez que eram contadas num contexto diferente, gerando inúmeras versões e isso foi um fator crucial para elas sobreviverem até o momento em que foram publicadas.


     Uma história somente sobrevive na memória popular a  medida que ela tem algum valor para as pessoas, se as ideias dela significam algo naquele contexto e a narrativa oral fazia essa adaptação automaticamente, no entanto assim que esses contos de fada foram publicados, eles tornaram-se estáticos e foram aos poucos se distanciando das pessoas que já não viviam nem pensavam como no século XVII. Mesmo assim a Disney pode explorar o imaginário infantil ainda muito romântico graças a influência francesa até o anos 60 quando o pensamento americano começou a se popularizar. Aquela imagem da mulher frágil em histórias envolvendo nobres em seus grandes castelos já não seduzia mais os jovens que começavam a produzir uma cultura urbana que contestava padrões de sexualidade e comportamento. Aos poucos a Disney percebeu que o modelo dos clássicos não atraía mais, seu público havia amadurecido muito com a televisão e certas coisas eram infantis demais até mesmo para uma criança. O próprio formato de desenho animado se tornou obsoleto depois do sucesso de animações de comédia como Shrek e poderia  ter sido o fim do que consagrou a Disney.

    As animações computadorizadas de comédia repetiram tanto a fórmula do ogro satirizando os contos de fada que rapidamente saturaram o público que já não se surpreendia em personagens ridicularizando coisas que todos já haviam entendido que não faziam sentido nas antigas histórias. Foi então que pouco a pouco, a Disney passou a produzir animações com o mesmo padrão estético característico de seus desenhos, mas mostrando personagens mais maduros e independentes que os protagonistas dos clássicos do estúdio, representando muito mais aquele novo publico. Assim chegamos à Malévola, uma releitura inteligente que mostra que o modelo de protagonista hollywoodiano que reprisamos nas novelas é tão fraco que é necessário explorar o vilão, naturalmente dotado de conflitos dramáticos na sociedade em que não se adapta.


    Apesar de Malévola ter vários elementos fantásticos e não mostrar a protagonista como uma criatura adoradora das trevas (diferentemente do desenho de 1959) para que o público se sentisse confortável em se aproximar do personagem de Angelina Jolie, a história de Malévola contada paralelamente a de Aurora (a bela adormecida) explora uma história de amor trágica e cheia de conflitos sem jamais abandonar a profundidade do problema e esse é sem dúvida o grande mérito do filme. Um conto de fadas amadurecido para um publico infantil que já cresce aprendendo a não ser criança. Essa abordagem pode fazer com que muitos pensem em Malévola como um filme um tanto pesado para crianças, mas o mesmo se disse de O Rei Leão em 1994 e hoje ninguém liga para isso. Somos nós que ainda não aceitamos completamente essa nova infância e se quisermos ter algo de valor para ensinar para eles, é melhor amadurecermos também.

Felipe Essy

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