quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Santo Antônio em O Tempo e o Vento

          Buenas e me espalho! Nos pequenos dou de prancha e nos grandes dou de talho! Dessa vez não é com a minha saudação que começo o post, mas com a famosa entrada do capitão Rodrigo, personagem imortal de O Tempo e o Vento. Com a estreia amanhã da nova adaptação da obra de Erico Verissimo, eu não poderia deixar de falar um pouco sobre essa história, mas hoje eu vou falar na verdade é de nós. Sim, de mim e você que também mora em Santo Antônio por que, acredite ou não, nós também estamos nela - e não é apenas numa citação.

Borges de Medeiros em 1930 quando ainda se chama rua Direita.

         O Tempo e o Vento conta a história do Rio Grande do Sul não pela sucessão de tratados e conflitos políticos, mas pela vida de homens e principalmente mulheres que povoaram essa terra desde sua vastidão descampada até a presença cada vez mais próxima de uma civilização brasileira que lhes era estrangeira. Exatamente como na formação do Rio Grande, Erico Verissimo construiu sua obra através de histórias isoladas que se cruzavam e pouco a pouco convergiam dando origem a uma única história, a nossa história. Não estou falando de nós como parte do estado, estou falando literalmente de eu e você, por que acredite se quiser, Santo Antônio também está na obra - e não apenas como uma citação. Na verdade, nem todos percebem, mas uma das duas famílias principais na obra, os Cambará, teve origem em Viamão, município vizinho a Santo Antônio, na época Guarda Velha de Viamão, e com o qual dividimos o nome até 1760.


UM CAPITÃO RODRIGO QUASE PATRULHENSE


         Em um trecho do primeiro volume de O Continente, Erico conta a imigração do açoriano José Borges para nosso estado, na época Continente de São Pedro, e sua vinda para Viamão, do qual Santo Antônio originalmente fazia parte:


Zé Borges, mulher e filhos embarcam num batelão, sobem a grande laguna, vão para os campos do Viamão. Lá encontram outros casais das ilhas. Mas na Capela Grande as imagens dos santos têm faces para eles estranhas.


Fazem casa de barro com coberta de palha. Comem carne-seca com farinha e suspiram de saudade da açorda, do pão branco, da sardinha, do azeite, da cebola e do alho.

(Continente I, pg. 90)*

         Ao mesmo tempo, também é narrada a vinda do temido bandoleiro Chico Rodrigues, ladrão de gado e violador de propriedades, para o Continente. Não demora e houvesse o rumor de sua aproximação em Viamão e na já então independente Santo Antônio da Guarda Velha:

Em Santo Antônio da Guarda Velha, no Rio Grande, no Rio Pardo, em Tramandaí e Viamão não havia ninguém que não tivesse ouvido falar nas proezas dum tal Chico Rodrigues.


E de homens como ele havia centenas e centenas.

As patas de seus cavalos, suas armas e seus peitos iam empurrando as linhas divisórias do Continente do Rio Grande de São Pedro.

(Continente I, pg. 91)*
       Chegando em Viamão, José Borges conhece o povo pacato, com o qual compartilhamos nossas origem no Continente:
          Em Viamão se vive na paz de Deus. 

Casas baixas de barro com rótulas pintadas de verde. Cantigas das Ilhas. 
Velhas de longas mantilhas pretas com rosários nas mãos, vão aos domingos à missa
em carretas de rodas maciças puxadas por lerdos bois. Fazem promessas, acendem velas, são 
devotas do Espírito Santo. 
          E os vagamundos aventureiros que passam por ali, riem daquelas gentes pacatas, que
respeitam a lei e odeiam a guerra, que falam cantando e às vezes lhes preguntam: 
          Aonde vades? 
    Acham engraçadas suas caras, suas casas, suas comidas, suas roupas, seus cantares, 
suas danças: o feliz amor, o sarrabaio, a chamarrita. E nas quermesses de maio mofam da 
Pomba do Divino. Mas muitos deles tomam parte nas cavalhadas, que é a guerra dos cristãos 
contra os mouros.
 (Continente I, pg. 92)*
         Mas para o errante Chico Borges e seus bandoleiros aquele povo é o oposto da vida que conhecem:
    E quando esses homens sujos, de mosquete a tiracolo, chapéu de couro na cabeça, facão na cinta, vêem os açorianos suando ao sol das lavouras de trigo ou mourejando nas suas oficinas, e as mulheres graves e caladas em casa curtindo couro, fiando, tecendo, cozinhando, lavando, cuidando dos filhos - sacodem as cabeças guedelhudas e não compreendem como é que um cristão pode ficar parado sempre no mesmo lugar, a fazer a mesma coisa o dia inteiro, a vida inteira.
(Continente I, pg. 93)*
         Enquanto isso José Borges vai construindo a sua vida em Viamão:

      Zé Borges, tu plantas trigo, mas cresceu algodão na tua cabeça. Muitos anos se passaram. Mais cinco filhos nasceram. Como o trigo cresceram e amadureceram. Dois deles morreram. Duas das moças casaram. Mas a mais bela de todas, a ruiva de olhos garços, inda está solteira.
(Continente I, pg. 92)*

         E é justamente por Maria Rita, descrita no trecho acima, que Chico Rodrigues se apaixona:

       Os ventos do destino sopram Chico Rodrigues para as bandas do Viamão. 

       E num domingo à saída da missa ele vê Maria Rita, a de pele branca, cabelos ruivos e 
olhos garços. 
       Estava cansado de índias e chinas tostadas de sol com gosto de poeira e picumã. 
       Queria agora mulher branca. 
       Foi por isso, só por isso que na noite daquele domingo tirou Maria Rita de casa. 
      E agora lá vai ele com a ruiva na garupa. 
   Perdi a conta do tempo, mas se não me falha a memória devo andar beirando os 
cinqüenta. 
  Resolvi mudar de vida, requerer sesmaria, fazer casa, parar quieto, ser um senhor 
estancieiro, ter mulher, gado, cavalos e filhos, todos com a minha marca. 
    Chico Rodrigues olha para uma árvore forte, à beira da estrada, e pensa. De hoje em diante vou me chamar Chico Cambará.
(Continente I, pg. 93)*

     E o filho de Chico Cambará e Maria Rita o famoso capitão Rodrigo. Quem diria que os pais do personagem mais conhecido da literatura riograndense quase se conheceram quase em Santo Antônio?

SANTO ANTÔNIO NO FANDANGO

"Kerb em Novo Hamburgo" (1892), de Pedro Weingartner.
       Ao longo do livro, sempre que os povos de origem açoriana são citados sua personalidade e costumes são visto com estranheza pelos outros gaúchos. No trecho em que um dos personagens mais engraçados e cativantes da história, o Fandango, fala sobre os tipos de homens que conheceu nas suas andanças, nós também somos citados - e com nosso nome atual:

Agora, o que eu acho engraçado é esse povo que vive lá pras bandas do mar, nos campos de Viamão, de Conceição do Arroio e Santo Antônio da Patrulha.

Têm fala cantada que só galego 

são gente pacata e meio sovina 

mas cumprideira de suas obrigações.
(Continente II, pg. 257/258)*

Como você pode ver, Erico Verissimo foi de um esmero impressionante. Pela simples transformação do nome de nossa região, podemos perceber o crescimento de Santo Antônio em relação aos acontecimentos da história. Por isso além de me identificar com o Rio Grande do Sul descrito na obra, posso também perceber que de alguma forma estou nela, mesmo que apenas pelas breves passagens sobre minha cidade.

Ainda vamos falar mais sobre a obra e suas adaptações, mas isso é assunto para o próximo post. Até terça e um abraço!

Felipe Essy

*Numeração de páginas de acordo com a 3ª edição de 2004 pela Companhia das Letras, em comemoração do centenário de Erico Verissimo.

4 comentários:

  1. Muito boa tua matéria!!
    Porém eu sinto que, se fosse o caso de se ter orgulho ou citar nobremente algum traço histórico, prefiro os cavaleiros andantes renegados "gauchos" marginais descendentes de Artigas, tipo o Chico Rodrigues mesmo, do que essa herança católica ortodoxa conformista,de dias iguais, vinda das ilhas açorianas e portuguesas.

    Parabéns Felipe.

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    1. Valeu, seu Reis! Quando falamos da história oficial, dificilmente reconheceremos como heróis os personagens mais conhecidos, eu pessoalmente me interesso muito pelos causos dos imigrantes alemães no estado. Quanto ao livro, creio que é quase impossível não se afeiçoar a todos personagens, mas sem sombra de duvida Bibiana e o Fandango são alguns dos mais especiais. Um abração! ;)

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  2. Olá, muito linda mesmo tua matéria! Adorei! Entendo o comentário de Jo Reis, sei que a sociedade ou a religião podem limitar, tolher, sufocar as pessoas. Mas mesmo com nossas características de pacatos, etc, podemos sim revolucionar a cada dia, nunca aceitando a hipocrisia, nem outras pobrezas de espírito q diminuem o ser humano.

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    1. Muito obrigado, Luzia! O ser humano é o único com a capacidade de construir o meio em sua volta, no entanto a maioria adere ao que já existe por comodidade, sustentando o sistema vigente que muitas vezes criticam. Ainda assim, nem um sistema de total censura pode parar as ideias mais fortes.

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