segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Minha Vida Crônica V

Era uma manhã de quinta-feira. Sentado num banco de madeira velho na rodoviária, eu esperava o ônibus para Vento Forte que só chegaria daqui a quarenta minutos, então pouco me restava além de ficar ali sentado tentando não imaginar quantos já não haviam feito o mesmo lustrando aquele banco. A viagem era para visitar minha tia Lúcia que fez minha infância parecer melhor do que realmente foi como só as avós sabem fazer e mesmo tão rígida quanto meus pais até suas censuras eram cobertas de açúcar. Todo ano eu ia para lá. Dessa vez, meu primo estava fora e por isso minha tia me convidou para lhe fazer companhia no fim de semana.

Na rodoviária, moscas rodopiavam de mãos dadas numa frenética dança me fazendo de salão. Esbofeteei o ar como quem desliga a música e manda os convidados embora, mas logo voltaram e começaram outra vez. Os cinquentões do bairro se reuniam entre as paredes azulejadas do boteco ao lado e os banheiros de porta quebrada davam todo o charme que uma rodoviária precisa. Muitos bocejos e devaneios depois, o ônibus chegou. Levantei e fui ligeiro ao balcão sem parecer desesperado. Detrás do vidro, os óculos da moça me disseram:

- Pra onde?
- Vento Forte.

Desviei o olhar e cavouquei meus bolsos atrás do dinheiro. Achado o tesouro, desdobrei e pousei as notas sobre o mármore frio, esperando a impressora raquítica terminar o serviço. Olhei os rostos que eu não lembraria e pensei como havia tanta gente para não conhecer vivendo tanto tempo na mesma cidade... O crep-crep parou com um rasgo e a passagem deslizou sob o vidro.

- Próximo.

Saindo no mesmo passo que cheguei, me senti como quem sai de um quarto de bordel e vê outro fechando a porta. Parei diante do motorista que bloqueava a porta e lhe entreguei a passagem. Pelas lentes escuras fez uma breve analise e me devolveu a passagem. Pensando em qual lado teria mais Sol, procurei o lugar ideal. Deixei o corpo cair sobre a poltrona e senti cada dia em que ela não foi limpa. Dei uma olhada para o mundo lá fora e suspirei vendo que não havia nada para ver.

O ônibus estremeceu e o mundo acelerou para trás. Cada um ali dentro se virou para sua janela, vendo suas próprias projeções contra o vidro. O ônibus parou e alguns rostos novos entraram enquanto o mundo voltava a ir para trás...

- E aí! De repente disse alguém do meu lado.
- Hã... E aí. Respondi sem mesmo saber com quem eu falava.
- Tá indo para Vento Forte? Disse num sorriso, sentando ao meu lado.
- Sim, sim... Repeti pensando no que dizer. - Vou ver minha tia.
- Legal! Eu só vou pro trabalho, como sempre. Concluiu ele, como se eu já soubesse disso.

Sorri de leve para disfarçar e me virei para a janela. Quem era aquele cara? Eu conhecia? Parecia que sim. Eu não me lembrava de vê-lo em nenhum lugar. Em Vento Forte eu quase não saía da casa da minha tia, a não ser algumas poucas voltas com meu primo. Pensei em ver se suas roupas davam alguma dica do seu trabalho. Discretamente olhei para o estranho e vi que não havia nada que me ajudasse muito. Jeans e camiseta são universais. Me voltei para a janela de novo.

- Parece que você vai ficar mais tempo por lá dessa vez. Disse ele olhando para minha mochila cheia até o fecho.
- É, respondi surpreso. - Vou ficar uns dias. Meu primo tá fora e minha tia me pediu para eu ficar com ela.
- Hm... Ele disse recostando na poltrona como se aquela história já passasse do interesse da pergunta.

Certamente me conhecia. Como sabia quanto tempo eu costumava ficar em Vento Forte? Talvez fosse um amigo de um conhecido meu que eu costumava encontrar e nunca tivesse falado diretamente. É possível, mas se me conhecesse de perto demonstraria algum interesse pelo meu primo que sempre estava comigo, perguntaria aonde ele tinha ido, como estava... Isso estava estranho. De repente, como um exército de gigantes, torres de navalhas giratórias se revelaram entre as árvores na distância e avançaram ao nosso lado. O parque eólico se estendia até onde a vista alcançava como um jardim de cata-ventos perfeitamente alinhados, divertindo nossa imaginação como só um parque sabe fazer.

Um tempo depois, a ponte sobre a RS 30 anunciava que eu tinha enfim chegado a Vento Forte. Muitas curvas depois a rodoviária avançou e como se abocanhasse o ônibus ela o parou entre os dentes de seu enorme telhado.

- Bem, disse o estranho. – Tá na hora de levantar e ir pro serviço!
- É. Disse eu sem ter como retribuir um “eu também”.

Avançamos pelo corredor sem passageiros e descemos se despedindo com um aperto de mãos, indo cada um pro seu lado. A tensão tinha me deixado “apertado” e resolvi encarar o banheiro da rodoviária já que a casa da tia Lúcia era meio longe. Suja, meio acabada e com todos boxs ocupados para variar, fui obrigado a fazer o "serviço" ao lado de um velho duvidoso naqueles horríveis mictórios, tentando me virar o máximo possível para o lado oposto. Feito o trabalho e guardado o instrumento, fui para o balcão das passagens me informar dos horários para voltar na segunda-feira e eis que o estranho do ônibus sorriu para mim atrás do vidro.


F. Essy

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